terça-feira, 17 de junho de 2008

Resenha do Filme - "O Oitavo Dia" de Jaco Van Dormael, 1996.

O filme tem como pano de fundo os desencontros entre pessoas comuns, que repentinamente são obrigadas a compartilhar o seu "mundo normal” com outra “diferente”. O resultado desses encontros inesperados e indesejados são, quase sempre, não muito bem aceitos, causados, principalmente pelo preconceito daqueles que, necessariamente, deveriam ser os principais articuladores de um desenvolvimento harmonioso entre os participantes de uma sociedade que se julga verdadeiramente saudável. Mas, infelizmente, justamente estes, são os que não se encontram preparados.
O relacionamentos com pessoas desse "tipo" não são, na maioria dos casos, planejados ou desejados. No entanto, a possibilidade de tal fato acontecer é algo a ser considerado por todos. O filme de Philippe Godeau mostra isto claramente já nas cenas iniciais, quando o jovem Georges, portador de SD, e Harry, um homem aparentemente comum, mas, terrivelmente obsecado por seu trabalho, envolvem-se em um acidente e, se não fosse por este fato, jamais teriam seus caminhos cruzados e alterados para sempre.
Pessoas como Georges não entram na vida das pessoas normalmente. Elas, os "especiais" entram quase sempre por “acidente”,e com Harry não foi diferente. Georges entra em sua vida, literalmente, por um acidente. A natureza, na maioria dos casos, sempre é a grande vilã! Mas, não para Harry, a sua distração do frio mundo real é fator de nascimento de seu "especial".
A pessoa considera “normal” é sempre a condutora, aquela que dirige e traça a linha “reta” da estrada da vida. Georges, pelo contrário, é aquele que cruza o caminho sem ser chamado, é o desastrado que faz com que as pessoas refaçam seus planos e mudem de direção. Georges é a “pedra” no caminho. Ele não provoca o acidente, ele é o próprio “acidente”. E depois desse “acontecimento” não há como alterá-lo. Apesar de existirem pessoas que tem a coragem de dar meia volta e seguir seu caminho tentando esquecer o “acidente”. (Infelizmente não são poucos os casos daqueles que abandonam seus “especiais”). Harry, o personagem “normal” após quase atropelar Georges não foge a sua responsabilidade e tenta dirimir sua falta oferecendo uma carona a sua quase “vítima”. É interessante notar que as pessoas "normais" estão sempre a oferecer “carona” àqueles pobres necessitados, porém, o que não conseguem perceber é que os desejos dos “especiais” são bem simples e poucos. O que eles querem, na verdade, não é uma carona, algo momentâneo, como na cena inicial do filme, mas uma companhia, um ombro amigo. Alguém para seguirem juntos à grande e maravilhosa viagem da vida. Georges afeiçoa-se já no primeiro momento por Harry e com isto parece não querer facilitar a localização da casa da irmã. A atenção, o cuidado podem significar carinho, e isto faz parte da pequena lista de desejos do nosso pobre Georges.
Harry é bem intencionado e prestativo, no entanto, a presença e o comportamento incomum de Georges, além do peso da responsabilidade por tal pessoa, começam a incomodá-lo. Isto faz crescer também o desejo de se ver livre o mais rápido possível daquele “peso”. Quantos não vêem assim todos aqueles que têm alguma necessidade especial, principalmente, a mental. O que Harry não percebe, ao primeiro momento, que o rapaz é também um fugitivo, mas no caso deste, a fuga é de uma instituição que abriga pessoas com SD, e o nosso caro desajeitado Geoges está decidido a não mais retornar àquele local.
“Diferentes” aos olhos de “diferentes” são iguais. Porém, a instituição em que Georges vive não é controlada por um “igual”. Os “iguais”, ou melhor, os "normais" são os que possuem o controle e autoridade sobre todos os “diferentes”. A vida é regida e ditada pelos “normais”, e só existe espaço para alguma liberdade dentro dos limites do prédio. Não existe espaço para o erro, ou melhor, para a opção de escolha. O pensamento e vontades dos “diferentes” são marginalizados e, portanto, devem ser controlados e, até mesmo suprimidos. (Cena em que George e sua namorada fazem amor no trailer do parque, só foi possível porque estavam fora de sua “prisão”).
O sanatório significa isolamento, prisão, controle de suas vontades e principalmente o afastamento daqueles que tem algum significado em suas vidas. (cena em que encontra a irmã e implora a ela que o aceite em sua casa).
Georges nasceu e cresceu em uma redoma protetora construída por sua mãe, que o protegia e ao mesmo tempo o isolava dos perigos do mundo. (certamente, porque o amava muito e, talzez, desejasse protege-lo do perigo maior; o preconceito). Porém, como as fantasias são frágeis e com o tempo, inevitavelmente , desbotam, rasgam-se ou quebram-se, ou seja, suas existências são tão efêmeras quanto a vida. A perda da mãe causou uma ruptura com a fantasia com seu mundo seguro, onde, mais do que “pão”, recebia alimento para a sua alma, o carinho e amor de sua mãe, pois havia alguém que verdadeiramente o amava. (Cena marcante, em que aparece por diversas vezes, Georges lembra-se de sua mãe penteando carinhosamente seus cabelos). Georges não está à procura de um teto e conforto material, ele está em busca do seu paraíso e amor perdidos.
Harry é também um fugitivo de seu mundo extremamente racional em que os valores foram invertidos, e que ele toma consciência disto um pouco tarde. (cena em que esquece as filhas na estação, ao dar mais prioridade ao seu trabalho do que a família). Harry é o representante da racionalidade e Georges o da irracionalidade, nada poderia ser mais antagônico. Harry vê Georges como representante de tudo àquilo que ele não aceita em seu mundo. O sentimento acerbado, a imprevisibilidade, a falta de compromisso, a liberdade, a irracionalidade, a não delimitação de fronteiras, a franqueza, o não consumismo e a preocupação única com o presente. Georges não chora o passado, nem se preocupa com o futuro. Por tudo isso Harry nos primeiros momentos sente a necessidade de afastar-se de Georges o mais rápido possível. Cena em Harry o abandona numa encruzilhada. Colocando Georges numa situação inusitada; escolher e seguir por um dos quatro caminhos exatamente iguais. A cena é bem emblemática, pois sua pouca razão e mente fortemente pragmática não lhe permite fazer tal proeza de escolha. A sua pouca lógica só lhe permite seguir por caminhos já construidos. Felizmente Harry volta atrás e o resgata daquele "inferno" em que fora abandonado.
O convívio forçado dá tempo e oportunidade para Georges mostrar a harry algumas belezas que a racionalidade dos "normais" não lhes permitem enxerguar. Harry tem seus seus olhos abertos para uma nova possibilidade que até então nunca havia experimentado, ou imaginado que pudesse existir. Começa também a colocar em xeque a sua própria racionalidade e seu modo de vida. O mundo após Georges já não é o mesmo, um novo caminho passa a existir. Harry é capaz agora de entrega-se a comportamentos que até então seriam impensáveis, e seriam consideradas realmente “loucuras”. Invadir um parque de diversões e passar a noite no mesmo, ou fazer um show pirotécnico para comemorar o aniversário da filha.
Porém, como nem tudo na vida não são flores, e o filme de Godeau é um filme de “Amor”, e como todo bom filme de amor, O desfecho é dramático, porém, ao mesmo tempo, poético.
Na mesma proporção em que Harry ganha um novo mundo, mais colorido, mais alegre e mais cheio de vida; ou melhor, uma nova racionalidade “irracional” toma-lhe o ser, e o faz mais feliz. Georges, porém, após tentativas em ter o seu velho mundo de volta. Fracassa e, diante da encruzilhada da vida, a única coisa que consegue é ser contaminado pela “racionalidade” do mundo, o que o faz agir como uma "pessoa normal", ou seja, não agir “irracionalmente”, como é de seu costume. A racionalidade fria e fatalista dos "normais" toma-lhe o ser, e o faz tomar uma decisão final e inusitada para sua pouca racionalidade. Cria em sua mente o único caminho possível. Se o fim da existência é o começo de outra em que todos se reencontram,e se seu “Amor” foi para aquele caminho,então, é para lá que deve seguir para reencontrá-lo. Assim, e enfim, feliz nos braços de sua mãe desiste desta vida racional sem amor.

2 comentários:

Philos & Sophos disse...

A inclusão de crianças "especiais" nas escolas públicas e particulares é o melhor caminho para um mundo mais fraterno.

Anônimo disse...

Gente, amei demais! :D
achei muito interessante a história deste dois "amigos", mesmo sendo tão "diferentes" um dos outros. Eu acho que uma amizade pode nascer mesmo dos mais "estranhos" modos.

beijo. Carolina